Alta prevalência de manifestações gastrointestinais concomitantes em pacientes com SARS-CoV-2
A atual pandemia1 causada pelo coronavírus da síndrome2 respiratória aguda grave (SARS-CoV-2) continua a se espalhar e, a partir de 1º de abril de 2020, mais de 920.000 casos foram relatados em todo o mundo. Embora as complicações respiratórias do SARS-CoV-2 tenham sido descritas, o impacto nos sistemas gastrointestinal e hepático permanece desconhecido, com níveis conflitantes observados em casos preliminares da China e Cingapura.
O objetivo desse estudo, publicado no jornal Gastroenterology, foi caracterizar as manifestações gastrointestinais em pacientes com SARS-CoV-2 na Stanford University School of Medicine.
Realizou-se uma análise retrospectiva dos dados coletados de pacientes consecutivos que foram apresentados à instituição entre 04 de março de 2020 e 24 de março de 2020. Todos os pacientes tinham infecção3 confirmada por SARS-CoV-2 com base em um teste de reação em cadeia da polimerase positivo. Foi obtida uma aprovação rápida do Conselho de Revisão Institucional de Stanford.
Além dos sintomas4 relatados pelos pacientes na apresentação, foram avaliados dados demográficos, clínicos e laboratoriais. Foram calculadas as frequências das variáveis categóricas e as médias ± desvio padrão (DP) ou mediana (intervalo interquartil [IQR]) das variáveis contínuas. Os dados foram coletados e analisados usando o SAS 9.4 (Charlotte, NC).
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Características da linha de base e curso clínico
Um total de 116 pacientes com SARS-CoV-2 confirmado foram identificados. No geral, a idade média foi de 50 anos [IQR, 35-67], com maior distribuição de homens (53,4%) e caucasianos (50,9%). Observou-se que 27,9% apresentavam IMC5 >30. 11,6% dos pacientes eram profissionais de saúde6 ou funcionários aliados.
Os sintomas4 mais comuns na apresentação incluíram tosse (94,8%), febre7 (76,7%), dispneia8 (58%) e mialgias9 (52,2%). A duração mediana desses sintomas4 respiratórios foi de 5,0 [IQR, 3-7] dias.
Com relação ao status de admissão, 83 pacientes (71,6%) foram avaliados apenas no pronto-socorro ou na clínica, 24 (20,7%) foram admitidos no andar da clínica geral e 9 (7,8%) foram admitidos na unidade de terapia intensiva10 (UTI). O tempo médio de permanência dos pacientes admitidos no andar geral foi de 5,0 dias (DP, 3,9) vs 10,5 dias (DP, 0,5) para os pacientes que necessitaram de cuidados em nível de UTI. Cinco pacientes ainda estavam hospitalizados no momento deste relatório e um paciente morreu no 11º dia no hospital.
Manifestações gastrointestinais e hepáticas11
Os sintomas4 gastrointestinais foram relatados por 31,9% dos pacientes, com 89,2% descrevendo suas queixas gastrointestinais como leves.
Perda de apetite (22,3%), náusea12/vômito13 (12,0%) e diarreia14 (12,0%) foram os sintomas4 gastrointestinais mais comuns. Nenhum dos pacientes desenvolveu sintomas4 gastrointestinais isolados ou sintomas4 gastrointestinais como manifestação inicial da infecção3 por SARS-CoV-2. A duração média dos sintomas4 específicos gastrointestinais, incluindo náusea12/vômito13 ou diarreia14, foi de 1 dia [IQR 0-4]; que foi significativamente menor que a duração dos sintomas4 respiratórios (P<0,001).
Sessenta e cinco pacientes foram submetidos a testes laboratoriais que incluíram enzimas hepáticas15 e níveis totais de bilirrubina16 na apresentação, com 26 pacientes (40%) demonstrando disfunção hepática17. Observou-se que 22 dos 26 pacientes com elevação das enzimas hepáticas15 apresentavam enzimas hepáticas15 basais que estavam dentro dos limites normais. Observou-se que todos os quatro pacientes com anormalidades basais nas enzimas hepáticas15 apresentaram uma elevação de pelo menos duas vezes nas enzimas hepáticas15 durante o curso da doença por SARS-CoV-2.
Entre aqueles com anormalidades nas químicas do fígado18, observou-se níveis ligeiramente mais altos de aspartato aminotransferase (AST) em comparação com alanina aminotransferase (ALT). Não foram identificados casos de fosfatase alcalina19 elevada. Dois pacientes apresentaram níveis anormais de bilirrubina16 durante a apresentação, mas também apresentaram níveis anormais de bilirrubina16 no início do estudo.
A gravidade da doença geral e o nível de atendimento foram associados aos níveis de aspartato aminotransferase no momento da apresentação (coeficiente de Pearson 0,33; P = 0,009). Nenhuma outra variável, incluindo a presença de doença gastrointestinal, se correlacionou com a gravidade da doença.
Discussão
Até onde se sabe, esta é a maior análise publicada de uma coorte20 americana de pacientes diagnosticados com SARS-CoV-2. Observou-se que uma proporção significativa (31,9%) dos pacientes apresenta sintomas4 gastrointestinais concomitantes antes da apresentação. Além disso, elevações nos níveis de AST se correlacionaram com a gravidade da doença. No entanto, nenhum dos pacientes desta coorte20 desenvolveu sintomas4 gastrointestinais como apresentação inicial ou como sintomatologia isolada da infecção3 por SARS-CoV-2.
Relatos anteriores de sintomatologia gastrointestinal na COVID-19 variaram, com estimativas variando de 5-50%. Enquanto a etiologia21 dos sintomas4 gastrointestinais observada no SARS-CoV-2 é desconhecida, a ECA2, um receptor celular, parece desempenhar um papel crítico no ciclo de vida e na patogênese22 do SARS-CoV-2, e é amplamente expresso em todo o trato gastrointestinal.
O envolvimento isolado do AST pode potencialmente indicar uma etiologia21 não hepática17, no entanto, relatórios de autópsia23 de um paciente com infecção3 grave por SARS-CoV-2 revelou esteatose24 microvesicular moderada com atividade inflamatória lobular e portal leve sugestiva de lesão25 viral direta no fígado18, em comparação com apenas infiltrados inflamatórios mononucleares intersticiais mínimos em biópsias26 cardíacas.
Adicionalmente, em uma subanálise dos dados, 43 pacientes foram rastreados quanto a lesão25 cardíaca com os níveis de troponina I ou T, e apenas 3 foram notados como tendo biomarcadores cardíacos positivos. É interessante notar que 2/3 desses pacientes apresentaram valores normais de AST.
Existem várias limitações dessa análise. Este é um estudo de uma única instituição que leva à possibilidade de viés regional e é necessário cautela antes de generalizar a experiência. No entanto, de acordo com os relatórios de saúde6 pública do período estudado, um total de 364 casos de SARS-CoV-2 foram identificados no município do estudo (Santa Clara County, CA), e os 116 pacientes da instituição em questão no estudo representam mais de 30% do total de casos relatados, potencialmente ajudando a generalização das observações.
Além disso, a decisão de obter testes de função hepática17 não foi controlada, levando ao potencial de viés de recordação. Como a avaliação do SARS-COV-2 no hospital do estudo foi simplificada, a documentação exaustiva dos sintomas4 não respiratórios pode estar incompleta.
Adicionalmente, atualmente, o teste era oferecido apenas sob critérios específicos (que exigiam sintomas4 pulmonares) e poderia ter perdido pacientes com sintomas4 gastrointestinais, subestimando a verdadeira prevalência27 de envolvimento gastrointestinal. Também não está claro se os resultados podem ser extrapolados para pacientes28 assintomáticos ou minimamente sintomáticos que não procuram atendimento médico.
Em resumo, os resultados se somam ao crescente corpo de literatura que observa uma proporção significativa de manifestações gastrointestinais simultâneas relacionadas ao SARS-CoV-2. A elevação nos níveis de AST foi a única variável correlacionada à atividade da doença.
Leia sobre "Provas de função hepática17", "Lesão25 cardíaca em pacientes com COVID-19" e "Dinâmica de transmissão do SARS-CoV-2".
Fonte: Gastroenterology, publicação em 10 de abril de 2020.