Estudos destacam efeitos da redução do álcool nos sintomas físicos e mentais e no risco de câncer
Globalmente, o etanol – a principal forma de álcool nas bebidas alcoólicas – é a substância psicoativa mais utilizada. Em 2019, 44% da população global com 15 anos de idade ou mais tinha consumido álcool no ano anterior. A prevalência1 do consumo de álcool varia consideravelmente de acordo com a região geográfica, variando de 4% na região do Mediterrâneo Oriental da Organização Mundial da Saúde2 (OMS) a pelo menos 60% nas regiões europeia, americana e do Pacífico Ocidental, e é maior entre os homens do que entre mulheres.
Sabe-se que o consumo indevido de álcool está relacionado a diversos riscos para a saúde2, causando diferentes doenças, inclusive vários tipos de câncer3, e aumentando a mortalidade4. Porém, há cada vez mais evidências a respeito dos potenciais benefícios da redução ou cessação do álcool para reduzir esses riscos.
Uma revisão sistemática, publicada na revista Addiction Biology, e uma perspectiva, publicada no The New England Journal of Medicine, destacam como a redução do consumo de álcool afeta os sintomas5 físicos e mentais e o risco de câncer3.
Confira a seguir as descobertas de cada estudo.
Redução de danos – uma revisão sistemática sobre os efeitos da redução do álcool nos sintomas5 físicos e mentais
Com base no conhecimento de que o consumo indevido de álcool causa uma infinidade de doenças e aumenta a mortalidade4, esta revisão sistemática examina se a redução do consumo individual de álcool pode contribuir para uma minimização dos riscos para a saúde2 no âmbito de uma abordagem de redução de danos.
De fato, os 63 estudos revisados indicam que as intervenções que visam a redução do álcool (incluindo a abstenção total como um possível objetivo terapêutico) resultaram ou foram associadas a efeitos positivos em consumidores nocivos, perigosos ou dependentes de álcool.
Foram observados benefícios importantes na redução de lesões6 associadas ao álcool, recuperação da função cardíaca ventricular na cardiomiopatia alcoólica, redução da pressão arterial7, normalização de parâmetros bioquímicos, redução do peso corporal, melhoria histológica8 na doença hepática9 pré-cirrótica relacionada ao álcool e progressão mais lenta de uma fibrose10 hepática9 já existente atribuível ao álcool.
Além disso, a redução da ingestão de álcool pode resultar na redução de sintomas5 de abstinência, da prevalência1 de episódios psiquiátricos e da duração dos dias de internação hospitalar; na melhoria dos sintomas5 de ansiedade e depressão, melhoria da autoconfiança e da qualidade de vida física e mental; em menos consequências adversas relacionadas ao álcool; bem como em níveis mais baixos de estresse psicossocial e um melhor funcionamento social.
A literatura revisada demonstrou notáveis benefícios em termos de custos socioeconômicos em áreas como o sistema de saúde2 médico ou a produtividade da força de trabalho.
Os indivíduos com maior vulnerabilidade se beneficiam ainda mais significativamente da redução do consumo de álcool (por exemplo, aqueles com hipertensão11, hepatite12 C, comorbilidades psiquiátricas, gravidez13, mas também entre adolescentes e adultos jovens).
Concluindo, os estudos revisados apoiam fortemente e enfatizam a importância e os benefícios da triagem inicial precoce para o uso problemático de álcool, seguida de intervenções breves e outras intervenções em unidades de saúde2 médicas de atendimento primário para reduzir a ingestão de álcool.
Perspectiva da IARC sobre redução ou cessação do álcool e risco de câncer3
A Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer3 (IARC) classificou as bebidas alcoólicas como cancerígenas para humanos (Grupo 1) com base em evidências suficientes de causalidade para cânceres oral, de faringe14, de laringe15, esofágico (células16 escamosas), hepático (hepatocelular), colorretal, e de mama17 (aqui designados por cânceres relacionados ao álcool).
O etanol presente em bebidas alcoólicas e o acetaldeído associado ao consumo de bebidas alcoólicas também são classificados como cancerígenos para humanos (Grupo 1).
Em todo o mundo, em 2020, cerca de 741.300 novos casos de câncer3 (4,1% de todos os novos casos de câncer3) foram atribuíveis ao consumo de álcool (6,1% entre os homens e 2,0% entre as mulheres). Recentemente, a OMS declarou que “nenhuma quantidade segura de consumo de álcool para o câncer3 e a saúde2 pode ser estabelecida”.
Em 2010, a 63ª Assembleia Mundial da Saúde2 aprovou a Estratégia Global para Reduzir o Uso Nocivo do Álcool. Em consonância com os objetivos delineados na Estratégia Global, tem aumentado o conhecimento sobre os potenciais benefícios da redução ou cessação do álcool para diminuir os riscos de câncer3 relacionado ao álcool.
De fevereiro a maio de 2023, o Programa de Manuais de Prevenção do Câncer3 da IARC reuniu um grupo de trabalho de 15 cientistas de oito países para revisar estudos publicados e avaliar qualitativamente a força das evidências epidemiológicas sobre o potencial da redução ou cessação do álcool para reduzir o risco de câncer3 relacionado ao álcool e das evidências mecanísticas sobre os efeitos potenciais da redução ou cessação do álcool para reduzir a carcinogênese relacionada ao álcool.
Aqui é apresentado um resumo das evidências.
Leia sobre "Limitar o consumo de álcool reduz o risco de câncer3" e "Como manter mais baixo o risco do consumo de bebidas alcoólicas".
Estudos epidemiológicos – evidência para locais específicos de câncer3
- Câncer3 oral
Em 2021, o Grupo de Trabalho para os Manuais da IARC, Volume 19, sobre prevenção do câncer3 oral encontrou evidências suficientes de que “abandonar o consumo de álcool diminui o risco de câncer3 oral”. Na revisão aqui descrita, o Grupo de Trabalho concluiu que havia evidências suficientes de que a redução ou cessação do consumo de álcool reduz o risco de câncer3 oral. - Câncer3 do esôfago18
O Grupo de Trabalho concluiu que havia evidências suficientes de que a redução ou cessação do consumo de álcool reduz o risco de câncer3 do esôfago18. - Câncer3 de laringe15
O Grupo de Trabalho concluiu que havia evidências limitadas de que a redução ou cessação do consumo de álcool reduzia o risco de câncer3 de laringe15. - Câncer3 colorretal
O Grupo de Trabalho concluiu que havia evidências limitadas de que a redução ou cessação do consumo de álcool reduzia o risco de câncer3 colorretal. - Câncer3 de mama17
O Grupo de Trabalho concluiu que havia evidências limitadas de que a redução ou cessação do consumo de álcool reduz o risco de câncer3 da mama17. - Câncer3 de faringe14
O Grupo de Trabalho concluiu que não havia evidências adequadas de que a redução ou cessação do consumo de álcool reduzisse o risco de câncer3 da faringe14. - Câncer3 de fígado19
O Grupo de Trabalho concluiu que não havia evidências adequadas de que a redução ou cessação do consumo de álcool reduzia o risco de câncer3 de fígado19.
Estudos mecanísticos
Na ingestão, o etanol é oxidado em acetaldeído pela álcool desidrogenase (ADH) e depois em acetato pela aldeído desidrogenase (ALDH). A exposição a altos níveis de acetaldeído, um potente metabólito20 genotóxico, é um dos principais determinantes da carcinogênese relacionada ao álcool, particularmente no trato aerodigestivo superior.
A oxidação local do etanol em acetaldeído é catalisada principalmente pelas enzimas ADH microbianas. Em contraste, a capacidade do microbioma21 e das mucosas22 orais ou intestinais de eliminar o acetaldeído é limitada devido às baixas atividades da ALDH, o que resulta no acúmulo de acetaldeído em concentrações genotóxicas na saliva, no suco gástrico e no conteúdo do cólon23.
Esta exposição ao acetaldeído é marcadamente aumentada por dois outros fatores de risco importantes para cânceres relacionados ao álcool: o polimorfismo genético das enzimas humanas ADH e ALDH2 e o tabagismo.
Em pessoas com baixa atividade da ALDH2 (heterozigotos ALDH2*2), o metabolismo24 do etanol resulta no dobro da concentração de acetaldeído salivar enquanto o etanol permanecer no corpo.
O tabagismo contínuo combinado com o consumo pesado e contínuo de álcool induz alterações na flora microbiana oral, especialmente em cepas25 microbianas que são altas produtoras de acetaldeído, o que pode contribuir para o efeito sinérgico observado do consumo de álcool e do tabagismo no risco de câncer3 oral. Além disso, após um desafio com etanol, entre pessoas que fumam, os níveis de acetaldeído salivar durante o tabagismo concomitante foram 7 vezes maiores que os dos participantes não fumantes.
A genotoxicidade é o mecanismo mais bem descrito pelo qual o consumo de álcool causa câncer3. O acetaldeído – mesmo em baixas concentrações – reage com o DNA, resultando em danos ao DNA, incluindo aberrações cromossômicas e adutos de DNA, que podem, por sua vez, levar a mutações. Os danos ao DNA também podem resultar de outras vias genotóxicas que produzem várias espécies reativas de oxigênio (ERO) através de indução da enzima26 CYP2E1 induzível por etanol. Essas ERO podem levar à peroxidação lipídica, estresse oxidativo e perturbações no reparo do DNA.
Outros mecanismos de carcinogênese relacionada ao álcool foram propostos, alguns dos quais podem se aplicar à mama17 ou ao fígado19, onde é improvável que as concentrações locais de acetaldeído sejam altas.
O consumo de álcool altera a composição da microbiota27 intestinal e leva à disfunção da barreira epitelial e aumento da permeabilidade28 intestinal, resultando em aumento da translocação29 de micróbios e produtos microbianos através da mucosa30. A translocação29 microbiana e a endotoxemia desencadeiam inflamação31 sistêmica, com potencial para aumentar o risco de câncer3 através de estresse oxidativo, alterações nos níveis de citocinas32 e respostas imunológicas deficientes.
O consumo de álcool também diminui a absorção de folato e inibe enzimas críticas para o metabolismo24 do carbono-1 e a metilação do DNA. Entre as mulheres na pós-menopausa33, o consumo de álcool aumenta as concentrações circulantes de estradiol, testosterona e outros hormônios sexuais, ao mesmo tempo que reduz as concentrações de globulina34 ligadora de hormônios sexuais.
O Grupo de Trabalho revisou e avaliou todos os estudos disponíveis que examinaram os efeitos da cessação do consumo de álcool nos mecanismos potencialmente envolvidos na carcinogênese relacionada ao álcool (não havia dados disponíveis sobre a redução do consumo de álcool). A maioria dos estudos envolveu pessoas com transtorno por uso de álcool que frequentavam programas de reabilitação. Esses estudos examinaram diferentes biomarcadores de genotoxicidade, estresse oxidativo, fatores epigenéticos, alterações relacionadas ao sistema endócrino35, alterações no microambiente, respostas inflamatórias e imunológicas e alterações no microbioma21 oral e intestinal, medidos após vários períodos de abstenção. Não havia dados disponíveis sobre os efeitos da cessação do álcool sobre os hormônios sexuais entre as mulheres.
Globalmente, com base em fortes evidências de três mecanismos, o Grupo de Trabalho concluiu que havia evidências suficientes, provenientes de estudos mecanísticos, de que a cessação do consumo de álcool reduz a carcinogênese relacionada ao álcool.
Estudos sobre o metabolismo24 do etanol fornecem fortes evidências de que a cessação do álcool leva a uma rápida diminuição nas concentrações de acetaldeído salivar, resultando na eliminação imediata da exposição local ao acetaldeído relacionada ao álcool no trato aerodigestivo superior e no cólon23; isto é particularmente relevante para pessoas com baixa atividade da enzima26 ALDH2.
Houve fortes evidências de que, no contexto do consumo excessivo e contínuo de álcool, a cessação do consumo de álcool resulta numa diminuição das aberrações cromossômicas do DNA e dos micronúcleos nas células16 mononucleares do sangue36 periférico dentro de alguns meses a vários anos, e numa rápida redução ou eliminação da formação de adutos de DNA-acetaldeído nas células16 da cavidade oral37.
Finalmente, houve fortes evidências de que, entre pessoas com transtorno por uso de álcool, a cessação do álcool reverte o aumento da permeabilidade28 intestinal e a translocação29 microbiana.
Veja também sobre "Substâncias cancerígenas", "Interação entre álcool e drogas psicotrópicas" e "Câncer3 de Cabeça38 e Pescoço39".
Conclusão
Foi fornecida uma revisão e avaliação abrangentes das evidências disponíveis sobre a redução ou cessação do consumo de álcool e o risco de câncer3.
Com base nas evidências epidemiológicas (em particular, grandes estudos sobre a cessação do consumo de álcool a longo prazo), o Grupo de Trabalho concluiu que a redução ou cessação do consumo de álcool diminui o risco de câncer3 oral e câncer3 de esôfago18.
A revisão também revelou lacunas científicas sobre alguns ou todos os cânceres relacionados ao álcool, incluindo a duração da cessação necessária para observar uma redução do risco, redução do consumo, padrões de consumo ao longo da vida, risco de subtipos moleculares ou anatômicos de câncer3 e mecanismos biológicos que medeiam variações nas associações de duração da cessação.
A resolução destas lacunas reforçaria as evidências epidemiológicas e mecanísticas sobre os potenciais benefícios da redução ou cessação do consumo de álcool na causa do câncer3 e, assim, apoiaria indiretamente medidas de controle do álcool para reduzir o consumo.
Fontes:
Addiction Biology, Vol. 22, Nº 5, em setembro de 2017.
The New England Journal of Medicine, publicação em 28 de dezembro de 2023.