Nova diretriz médica brasileira traz recomendações para o tratamento da obesidade em relação à prevenção de doenças cardiovasculares
Cinco sociedades médicas brasileiras publicaram, no jornal científico ABC Cardiol, uma diretriz inédita que visa estruturar o tratamento da obesidade1 em relação à prevenção da doença cardiovascular (DCV), levando em consideração o risco cardiovascular e o estágio da obesidade1.
As entidades responsáveis pela elaboração do documento “Diretriz Brasileira Baseada em Evidências de 2025 para o Manejo da Obesidade1 e Prevenção de Doenças Cardiovasculares2 e Complicações Associadas à Obesidade” foram: Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade1 e da Síndrome Metabólica3 (Abeso), Sociedade Brasileira de Diabetes4 (SBD), Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e Academia Brasileira do Sono (ABS).
O documento determina que todo adulto com sobrepeso5 ou obesidade1 tenha seu risco cardiovascular avaliado e categorizado, incorporando o escore PREVENT para estimar a probabilidade de eventos como infarto6, AVC e insuficiência cardíaca7 em 10 anos.
A diretriz muda o foco do “quanto o paciente pesa” para “qual é o seu risco real de ter infarto6, AVC ou insuficiência8 cardíaca”. Para isso, orienta que todo adulto com sobrepeso5 ou obesidade1 seja classificado de acordo com o escore PREVENT e enquadrado em faixas de risco baixo, moderado ou alto para doença aterosclerótica cardiovascular (DASCV) ou em risco alto para insuficiência cardíaca7, o que passa a guiar objetivos e terapias (inclusive uso do cálcio coronário para reclassificar casos moderados).
Na prática clínica, isso se traduz em metas de perda de peso proporcionais ao risco (5% para benefícios metabólicos; ≥10% para reduzir eventos em quem tem risco moderado/alto) e no uso de um arsenal terapêutico atualizado, que inclui agonistas de GLP-1 (como semaglutida e tirzepatida), além da cirurgia bariátrica9 em perfis selecionados, sempre com manejo integrado de comorbidades10 e decisão compartilhada.
Saiba mais sobre "Obesidade1", "Doenças cardiovasculares2" e "Tratamento da obesidade1".
Contexto: obesidade1 e doença cardiovascular
A prevalência11 da obesidade1 mais que dobrou nas últimas quatro décadas e já afeta mais de um bilhão de pessoas no mundo. Em 2021, as doenças cardiovasculares2 (DCV) alcançaram 612 milhões de indivíduos e responderam por 26,8% de todas as mortes globais. Notavelmente, 79,5% dos anos de vida ajustados por incapacidade foram atribuídos a 11 fatores de risco, sendo o índice de massa corporal12 (IMC13) o que apresentou maior associação.
Além disso, dois terços dos óbitos relacionados à obesidade1 decorrem de DCV. No Brasil, estimativas de 2025 indicam que 68% dos adultos têm IMC13 ≥25 kg/m² e 31% vivem com obesidade1. Em 2021, houve 60.913 mortes prematuras associadas ao IMC13 elevado no país.
A obesidade1 é determinante central de DCV por vias indiretas (ao agravar fatores tradicionais como diabetes tipo 214, dislipidemia e hipertensão15) e por efeitos diretos do estado inflamatório da adiposidade sobre a estrutura e a função cardíacas. Evidências de epidemiológicas mostram associação entre categorias de sobrepeso5/obesidade1 (pelo IMC13) e maior risco de doença arterial coronariana e mortalidade16 cardiovascular. Estudos observacionais e de randomização mendeliana também relacionam elevação do IMC13 à incidência17 e à mortalidade16 por insuficiência cardíaca7.
A obesidade1 abdominal, medida por circunferência da cintura, é preditora independente de morbidade18 e mortalidade16 cardiovascular (CV) em qualquer faixa de IMC13. Mesmo indivíduos com IMC13 <30 kg/m² podem ter alto risco cardiometabólico quando há escassez de gordura subcutânea19 gluteofemoral e acúmulo de gordura20 visceral. Por isso, medidas como circunferência da cintura, relação cintura/quadril e relação cintura/altura são recomendadas para evidenciar adiposidade visceral.
Historicamente, o manejo da obesidade1 se concentrou em mudanças de estilo de vida e fármacos de eficácia limitada. A nova geração de medicamentos antiobesidade possibilita perdas de peso mais expressivas e sustentáveis. Com o aumento da complexidade terapêutica21 e benefícios observados em desfechos ligados à síndrome22 cardiorrenal metabólica, torna-se necessária a adoção de ferramentas de estratificação que orientem a escolha do tratamento.
Leia sobre "Repercussões cardíacas da obesidade1" e "Gordura abdominal23 e doenças cardíacas".
Como avaliar e categorizar o risco cardiovascular
A diretriz recomenda avaliar e categorizar o risco de DASCV e de insuficiência cardíaca7 (IC) em todos os adultos com sobrepeso5 ou obesidade1, orientando a conduta terapêutica21.
O PREVENT deve ser aplicado a pacientes entre 30 e 79 anos com IMC13 <40 kg/m², no modo que inclui valores de HbA1c24, estimando risco total de DASCV e de IC em 10 anos. A categorização do risco é em baixo, moderado ou alto para DASCV e risco alto para IC.
- Risco baixo: pessoas com sobrepeso5 ou obesidade1, com IMC13 menor que 40 e idade menor que 30 anos, que não apresentam nenhum fator de risco25 cardiovascular; pessoas com sobrepeso5 ou obesidade1 com idade maior ou igual a 30 anos, com risco cardiovascular calculado pelo escore PREVENT como menor que 5% em 10 anos.
- Risco moderado: pessoas com sobrepeso5 ou obesidade1, com IMC13 menor que 40, que nunca tiveram eventos cardiovasculares, com um ou mais fatores de risco; pessoas com sobrepeso5 ou obesidade1, com IMC13 menor que 40, em prevenção primária, com risco cardiovascular calculado pelo escore PREVENT como entre 5% e menor que 20% em 10 anos.
- Risco alto: pessoas com doença coronariana26 crônica confirmada, infarto6 agudo27 do miocárdio28, AVC isquêmico29 ou acidente isquêmico29 transitório, doença arterial obstrutiva periférica, revascularização em qualquer território arterial; pessoas em prevenção primária, com risco cardiovascular calculado pelo escore PREVENT maior ou igual a 20% em 10 anos; pessoas com diabetes tipo 214 há mais de 10 anos; pessoas com doença renal30 crônica grau 3b; pessoas com escore de cálcio coronário maior que 100 sem diabetes4 ou maior que 10 com diabetes4.
- Risco alto para IC: pessoas com IMC13 maior que 40, mesmo assintomáticas; pessoas com obesidade1, diabetes4 e hipertensão15 associados; pessoas com apneia obstrutiva do sono31 grave; pessoas com fibrilação atrial; pessoas com doença renal30 crônica grau 3b; pessoas com risco de insuficiência cardíaca7 calculado pelo escore PREVENT igual ou maior que 20% para os 10 anos seguintes; pessoas com doença aterosclerótica cardiovascular estabelecida; pessoas com sintomas32 sugestivos de insuficiência cardíaca7.
Veja também sobre "Insuficiência cardíaca congestiva33", "Infarto do miocárdio34" e "Síndrome metabólica3".
Recomendações da diretriz
A diretriz foi construída em formato de recomendações graduadas por grau de recomendação e nível de evidência, visando orientar o tratamento da obesidade1 conforme o risco cardiovascular individual. A classificação segue tabelas padronizadas (Classes de recomendação I/IIa/IIb/III e níveis de evidência A/B/C).
A estratégia proposta integra a avaliação de risco aterosclerótico e de insuficiência cardíaca7, com fluxos decisórios que consideram IMC13, presença de fatores de risco, doença cardiovascular estabelecida e risco estimado para eventos em 10 anos.
R1. “É RECOMENDADO avaliar e categorizar o risco em relação à Doença Aterosclerótica Cardiovascular (DASCV) e à Insuficiência Cardíaca7 (IC) de todos os indivíduos adultos acima de 18 anos com sobrepeso5 ou obesidade1, com o objetivo de orientar o tratamento da obesidade1.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: C.
R2. “É RECOMENDADO o uso do escore de risco PREVENT para avaliação do risco CV em pessoas com sobrepeso5 ou obesidade1 com IMC13 menor que 40 kg/m² e idade entre 30 e 79 anos, que estejam em prevenção primária, devendo o escore ser utilizado no modo que inclui o valor da HbA1c24, utilizando o risco DASCV total e o risco IC em 10 anos.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: C.
R3. “É RECOMENDADO categorizar o risco CV dos indivíduos com obesidade1 e sobrepeso5 como: risco DASCV BAIXO, MODERADO ou ALTO e risco IC ALTO.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: C.
R4. “DEVE SER CONSIDERADO o rastreamento para IC através da dosagem dos peptídeos atriais (NT-proBNP ou BNP) ou por método de imagem em pessoas com RISCO IC ALTO.” | Grau de recomendação: IIa. Nível de evidência: C.
R5. “É RECOMENDADA a redução sustentada de pelo menos 5% do peso, em indivíduos adultos com sobrepeso5 ou obesidade1 e RISCO DASCV MODERADO, para redução de fatores de risco CV, como hipertensão arterial35 sistêmica (HAS) e dislipidemia (DLP), bem como para atrasar ou evitar o surgimento de diabetes tipo 214.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: A.
R6. “DEVE SER CONSIDERADA a redução sustentada de pelo menos 10% do peso máximo já atingido na vida, em indivíduos adultos, com sobrepeso5 ou obesidade1 com risco DASCV MODERADO/ALTO, para redução de eventos CV.” | Grau de recomendação: IIa. Nível de evidência: B.
R7. “É RECOMENDADA a redução sustentada de pelo menos 10% do peso em indivíduos com obesidade1 e Fibrilação Atrial (FA) paroxística ou permanente, para reduzir o risco de complicações relacionadas à FA.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: B.
R8. “É RECOMENDADA a adoção de mudanças de estilo de vida, incluindo dieta saudável e atividade física, para todas as pessoas com sobrepeso5 ou obesidade1, independentemente do risco CV, com o objetivo de reduzir o peso, melhorar a saúde36, a qualidade de vida e prevenir HAS, diabetes tipo 214, DLP, DASCV e IC.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: A.
R9. “É RECOMENDADO o tratamento com um agonista37 do receptor GLP-1 (AR GLP-1) ou coagonista dos receptores GLP-1/GIP, para indivíduos adultos com sobrepeso5 ou obesidade1 e risco DASCV MODERADO ou ALTO, para redução de peso e fatores de risco CV.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: A.
R10. “PODE SER CONSIDERADO o uso de outras medicações antiobesidade com comprovada eficácia e segurança CV, em indivíduos adultos com sobrepeso5 ou obesidade1 e risco DASCV MODERADO ou ALTO, na impossibilidade de iniciar ou manter o tratamento com um AR GLP-1 ou coagonista dos receptores GLP-1/GIP, para redução de fatores de risco CV.” | Grau de recomendação: IIb. Nível de evidência: B.
R11. “É RECOMENDADO o tratamento com semaglutida SC 2,4mg em indivíduos com IMC13 ≥27Kg/m², sem diabetes4, e com doença CV estabelecida (PREVENÇÃO SECUNDÁRIA) para redução de morte CV, IAM e AVC.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: B.
R12. “NÃO É RECOMENDADO o uso de sibutramina em pacientes com obesidade1 e RISCO DASCV ALTO.” | Grau de recomendação: III. Nível de evidência: B.
R13. “É RECOMENDADO o tratamento farmacológico com um AR GLP-1 (Liraglutida, Dulaglutida ou Semaglutida SC ou Oral) em pessoas com Diabetes tipo 214, obesidade1 ou sobrepeso5 e RISCO DASCV ALTO, para redução de EVENTOS CV.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: A.
R14. “DEVE SER CONSIDERADO o uso de semaglutida 1,0 mg em pacientes com obesidade1 ou sobrepeso5, diabetes tipo 214 e doença renal30 crônica (DRC) com taxa de filtração glomerular ≥25ml/min/1,73m², para redução de eventos cardiorrenais.” | Grau de recomendação: IIa. Nível de evidência: B.
R15. “É RECOMENDADA a perda de peso para pessoas com obesidade1 e apneia obstrutiva do sono31 (AOS) moderada a grave, para melhora ou remissão da apneia38.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: C.
R16. “PODE SER CONSIDERADO o uso de liraglutida em combinação com mudança de estilo de vida em indivíduos com obesidade1 e apneia obstrutiva do sono31 moderada a grave, para redução da gravidade da AOS.” | Grau de recomendação: IIb. Nível de evidência: B.
R17. “DEVE SER CONSIDERADO o uso de tirzepatida em combinação com mudança de estilo de vida em indivíduos com obesidade1 e apneia obstrutiva do sono31 moderada a grave, para redução da gravidade ou remissão da AOS.” | Grau de recomendação: IIa. Nível de evidência: B.
R18. “É RECOMENDADA a redução de peso em pessoas com obesidade1 e IC estabelecida para melhorar a qualidade de vida, a função cardíaca e a capacidade para o exercício.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: A.
R19. “É RECOMENDADO o uso da semaglutida SC (2,4 mg/semana) ou da tirzepatida (5-15mg/semana) em pacientes com obesidade1 (IMC13 ≥30kg/m²) e IC estabelecida de fração de ejeção preservada (ICFEp), para redução de peso, melhora de qualidade de vida e de sintomas32 relacionados à IC.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: A.
R20. “É RECOMENDADO o uso de inibidores do SGLT2 (iSGLT2) em pacientes com sobrepeso5/obesidade1 e IC estabelecida (independentemente da fração de ejeção do VE), para redução de hospitalização e morte CV.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: A.
R21. “PODE SER CONSIDERADO o uso de AR GLP-1 em pacientes com obesidade1 e IC com fração de ejeção reduzida (ICFEr), para redução do peso, com exceção da IC em classe IV (NYHA).” | Grau de recomendação: IIb. Nível de evidência: B.
R22. “É RECOMENDADO o uso da semaglutida SC (2,4 mg/semana) ou da tirzepatida (10-15 mg/semana) em indivíduos com obesidade1 grau 3 (IMC13 ≥40kg/m²) com risco IC alto, para melhora de qualidade de vida e prevenção do surgimento de sintomas32 relacionados à IC.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: C.
R23. “DEVE SER CONSIDERADA a combinação de iSGLT2 com AR GLP-1 em pacientes com obesidade1, diabetes tipo 214 e risco alto de IC, para redução adicional de desfechos relacionados à ICFEp, por estar associada a maiores reduções, comparativamente à monoterapia com qualquer um dos agentes.” | Grau de recomendação: IIa. Nível de evidência: B.
R24. “É RECOMENDADA a indicação de cirurgia bariátrica9 para indivíduos com IMC13 ≥35 kg/m² e risco DASCV MODERADO/ALTO ou risco IC ALTO, quando o tratamento clínico disponível for insuficiente para promover perda de peso e melhora de fatores de risco CV de forma sustentada.” | Grau de recomendação: I. Nível de evidência: B.
R25. “PODE SER CONSIDERADA a indicação de cirurgia bariátrica9 em pacientes com IMC13 ≥35 kg/m² e IC estabelecida para promoção de perda de peso, melhora de fatores de risco e sintomas32 relacionados à IC, devendo ser avaliada com cautela e de acordo com o risco cirúrgico do paciente.” | Grau de recomendação: IIb. Nível de evidência: B.
Acesse aqui a diretriz na íntegra para conferir todos os detalhes.
Conclusão
Diante da escalada da obesidade1 e de sua relação direta com a doença cardiovascular, a diretriz coloca a avaliação do risco cardiovascular no centro do planejamento terapêutico. Elaborado em conjunto por cinco sociedades médicas brasileiras, o documento oferece estratégias baseadas em evidências para tratar a obesidade1 e prevenir DCV, ajustadas ao contexto de saúde36 pública do país e com análise cuidadosa de riscos e benefícios de cada abordagem.
Reconhece-se, porém, o desafio de implementação em larga escala, especialmente porque não há fármacos antiobesidade disponíveis no SUS. Assim, a priorização de intervenções com eficácia comprovada na redução de eventos cardiovasculares, sobretudo nos grupos de maior risco, é destacada como caminho pragmático para orientar decisões clínicas e planejamento de recursos, com foco no controle da obesidade1 e na diminuição de suas complicações.
Fonte: ABC Cardiol, Vol. 122, N° 9, em setembro de 2025.