Estudo sugere que infecção do corpo carotídeo pelo SARS-CoV-2 pode ser responsável pela hipoxemia silenciosa em pacientes com COVID-19
Os mecanismos patogênicos subjacentes à sintomatologia dos pacientes com doença do coronavírus 2019 (COVID-19) não são bem compreendidos. Uma manifestação clínica atípica e desconcertante encontrada em muitos pacientes com COVID-19 é que eles apresentam hipoxemia1 grave, com níveis arteriais de tensão de oxigênio (O2) abaixo mesmo de 50 mmHg, sem sinais2 claros de desconforto (dispneia3) ou aceleração respiratória significativa.
Nessas condições, os pacientes com pneumonia4 por COVID-19 podem descompensar e, como consequência, sofrer uma rápida deterioração do estado clínico que pode levar à morte. A fisiopatologia5 desta chamada “hipoxemia silenciosa” ou “hipóxia feliz” é desconhecida.
Um declínio na tensão de O2 arterial é normalmente detectado por células6 sensoras de O2 no corpo carotídeo7 (CC), o principal quimiorreceptor arterial, que ativa rapidamente as fibras sensoriais que interferem nos neurônios8 do tronco cerebral9 para induzir hiperventilação compensatória e aumento da frequência cardíaca. Dessa forma, tanto a captação de O2 quanto sua distribuição aos tecidos são aumentadas.
A remoção bilateral do CC em humanos deixa os indivíduos inconscientes da hipoxemia1, com a abolição completa da resposta ventilatória hipóxica. Portanto, a inibição da responsividade do CC à hipóxia10 poderia ser uma explicação plausível para o impulso respiratório prejudicado e dispneia3 reduzida que caracterizam a “hipoxemia silenciosa” observada em pacientes com COVID-19.
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O parênquima12 do CC é organizado em grupos de células6 chamados glomérulos13. Cada glomérulo14 é composto de 4 a 8 células6 glômicas, ou Tipo I, semelhantes a neurônios8, que estão em contato próximo com uma rede de capilares15 fenestrados e são ricamente inervadas por fibras sensoriais aferentes do gânglio16 petroso.
As células6 glômicas, os elementos sensores de O2 no CC, contêm vesículas17 sinápticas abundantes com neurotransmissores que são rapidamente liberados em resposta à hipóxia10 para ativar as fibras sensoriais que se conectam aos centros respiratório e autonômico do tronco cerebral9. A responsividade aguda das células6 glômicas à hipóxia10 depende de um sistema especializado de detecção e sinalização de O2 mitocondrial, que é baseado na expressão de canais iônicos específicos, enzimas mitocondriais e subunidades da cadeia de transporte de elétrons (CTE).
Além das células6 glômicas quimiossensíveis, que podem ser facilmente identificadas por anticorpos18 contra a tirosina19 hidroxilase (TH), os glomérulos13 do CC também contêm um menor número de células6 Tipo II ou sustentaculares, semelhantes às células gliais20, com processos interdigitantes que envolvem as células6 glômicas.
As células6 Tipo II são células-tronco21 multipotentes que podem se diferenciar em células6 glômicas sensíveis ao O2 para apoiar o crescimento do CC sob hipóxia10 sustentada. Embora a detecção aguda de O2 seja uma propriedade intrínseca das células6 glômicas do CC, as respostas funcionais dessas células6 são moduladas por numerosos autossinais e sinais2 parácrinos gerados dentro do órgão.
A este respeito, um sistema renina-angiotensina (SRA) local e seus componentes principais (angiotensinogênio, enzima22 conversora de angiotensina e receptores de angiotensina) foram descritos no CC. Dado que a enzima22 conversora de angiotensina 2 (ECA2) tem um importante papel regulador no SRA e foi identificada como o receptor funcional pelo qual o SARS-CoV-2 entra nas células6 humanas, hipotetizou-se que essa enzima22 também poderia ser parte do SRA local do CC e, assim, fazer das células6 do CC um alvo potencial para infecção23 viral por SARS-CoV-2.
Para avançar com essa ideia, pesquisadores da Universidade de Sevilha, na Espanha, estudaram a expressão imunohistoquímica24 da ECA2 em tecido11 do CC humano adulto usando cortes histológicos25 finos obtidos de doadores cadavéricos disponíveis no banco de tecidos da instituição de pesquisa. O estudo foi publicado no periódico Function.
Mostrou-se que o tecido11 do CC expressa níveis significativos de ECA2. Como esperado, a coloração de ECA2 apareceu em vasos sanguíneos26, pois é sabido que esta enzima22 é altamente expressa em células6 endoteliais e de músculo liso vascular27. No entanto, a forte coloração de ECA2 também foi claramente observada, embora com intensidade variável, nos glomérulos13 do parênquima12 do CC sobrepondo-se à expressão de TH, o que sugere que ela foi expressa por células6 glômicas. Este padrão imunohistoquímico foi consistente nas amostras de CC humano estudadas (n = 4), bem como no CC de camundongos.
Além da caracterização histológica28 da expressão da proteína ECA2 do CC, usou-se qPCR para analisar os níveis de expressão de mRNA da ECA2 na coorte29 de CCs humanos (n = 18).
Descobriu-se que os níveis de mRNA da ECA2 são altamente variáveis entre todos os CCs estudados, sem qualquer correlação clara com a idade ou sexo do doador. Não se viu diferenças estatisticamente significativas nos níveis de mRNA da ECA2 associados à hipertensão30 medida em um grupo de indivíduos (n = 15) cujos prontuários médicos citavam evidências de pressão arterial31 antes da morte.
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A expressão da ECA2 no parênquima12 do CC sugere que as células6 glômicas sensíveis ao O2 podem ser alvos potenciais para a infecção23 por SARS-CoV-2. Evidências crescentes indicam que o SARS-CoV-2 circula no sangue32 e pode infectar, além do epitélio33 pulmonar, outros tecidos que expressam ECA2, como o neuroepitélio olfatório, o sistema cardiovascular34 e o trato gastrointestinal, produzindo alterações funcionais múltiplas e divergentes.
Assim, com base na alta expressão de ECA2 encontrada no CC humano, é plausível que a infecção23 por SARS-CoV-2 de células6 glômicas quimiossensoriais pudesse alterar sua capacidade de detectar mudanças na tensão arterial de O2, resultando no desconhecimento da hipoxemia1 como ocorre em caso de “hipoxemia silenciosa” observada em pacientes com COVID-19.
Os dados revelam uma alta variabilidade individual da expressão de ECA2 em tecido11 do CC humano, o que poderia explicar por que a “hipoxemia silenciosa” parece aparecer aleatoriamente entre os pacientes com COVID-19.
Em relação aos mecanismos pelos quais a infecção23 potencial por SARS-CoV-2 poderia prejudicar a resposta hipóxica do CC, uma possibilidade é que, em uma fase inicial, a infecção23 viral induza mudanças bioquímicas nas células6 glômicas alterando seletivamente seus mecanismos mitocondriais de detecção de O2. De fato, foi demonstrado que 24h após a infecção23 com SARS-CoV-2 o proteoma de células6 hospedeiras humanas já sofreu extensa modulação afetando, entre outras proteínas35, enzimas do ciclo de Krebs mitocondrial e subunidades da CTE.
Além disso, as proteínas35 do SARS-CoV-2 sintetizadas em células6 infectadas podem interagir e sequestrar numerosas proteínas35 do hospedeiro, várias delas normalmente expressas na matriz mitocondrial ou reunidas em complexos mitocondriais da CTE.
Alterações bioquímicas semelhantes em células musculares36 lisas de pequenas artérias37 pulmonares, que também têm um sistema de detecção de O2 baseado em mitocôndrias38, resultaria na redução da vasoconstrição39 pulmonar hipóxica e grande shunt40 intrapulmonar que sugere-se ocorrer em pacientes com COVID-19.
Em estágios mais avançados, a infecção23 do CC por SARS-CoV-2 poderia levar à inflamação41 e morte das células6 glômicas, reduzindo assim a quantidade de elementos quimiossensíveis no CC e, a partir daí, a capacidade de responder à hipoxemia1.
Em conclusão, o estudo sugere que a infecção23 do corpo carotídeo7 por SARS-CoV-2 pode ser a causa ou contribuir para a “hipoxemia silenciosa” observada em pacientes com COVID-19. A proposta poderia ser testada em estudos de autópsia42 de tecido11 do CC obtido de pacientes com COVID-19 e por trabalho experimental usando modelos transgênicos de camundongos com ECA2 humanizados.
Além disso, se a hipótese estiver correta, seria necessário estudar se o dano produzido pela infecção23 por SARS-CoV-2 no tecido11 quimiossensível do CC é transitório e em que medida altera o potencial regenerativo das células-tronco21 do CC.
Se confirmada, a hipótese justificaria o uso de ativadores do CC como estimulantes respiratórios em pacientes com COVID-19. Essas drogas agem a jusante43 do sensor de O2 mitocondrial, pois bloqueiam diretamente os canais de K+ nas células6 glômicas.
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Fonte: Function, publicação em 23 de novembro de 2020.