Para vencer o câncer precisamos de um novo começo, segundo Azra Raza, oncologista e professora de medicina do Chan Soon-Shiong Institute for Medicine
A Dra. Azra Raza, que lançará o livro “The First Cell and the Human Costs of Pursuing Cancer1 to the Last”, em 15 de outubro de 2019, pela Basic Books, é professora de medicina do Chan Soon-Shiong Institute for Medicine e diretora do MDS Center da Columbia University. Ela estuda e trata o câncer1 há 35 anos e fala sobre o progresso feito durante este tempo: houve muito menos do que parece. Apesar de alguns avanços, os tratamentos continuam sendo muito dolorosos, prejudiciais, caros e ineficazes. Cirurgia, quimioterapia2 e radioterapia3 prevaleceram por meio século.
Considere a leucemia4 mieloide aguda (LMA), especialidade da autora. A LMA é responsável por um terço de todos os casos de leucemia4. Atualmente, a idade média do diagnóstico5 é de 68 anos; aproximadamente 11.000 indivíduos morrem anualmente da doença. A taxa de sobrevida6 em cinco anos para adultos diagnosticados é de 24%, um transplante de medula óssea7 aumenta essas chances em 50%, na melhor das hipóteses. Esses números dificilmente mudaram desde a década de 1970.
A taxa geral de mortes por câncer1 nos EUA caiu um quarto desde seu pico em 1991, traduzindo-se em 2,4 milhões de vidas salvas - mas tratamentos aprimorados não são a principal razão dessa queda. Em vez disso, uma redução no tabagismo e melhorias na triagem levaram a 36% menos mortes para alguns dos cânceres mais comuns - pulmão8, colorretal, mama9 e próstata10. E, apesar de todos esses ganhos, as taxas gerais de mortalidade11 por câncer1 não são radicalmente diferentes das que eram na década de 1930, antes de aumentarem o consumo de cigarros. Enquanto isso, os custos dos medicamentos contra o câncer1 estão fora de controle, projetados para exceder US $ 150 bilhões até o próximo ano. Com as mais recentes imunoterapias custando milhões, o atual paradigma de tratamento do câncer1 está rapidamente se tornando insuportável.
O que precisamos agora é de uma mudança de paradigma. Hoje, os métodos de tratamento tendem a se concentrar nos piores casos - perseguindo as últimas células12 cancerígenas em pacientes em estágio terminal cujos prognósticos são os piores. Em vez disso, é preciso encontrar e destruir as primeiras células12 cancerígenas, detectando o câncer1 no seu início e detendo-o. Essa prevenção representa a alternativa mais barata, mais rápida e mais segura ao terrível e duradouro trio de tratamento. É a maneira mais universalmente aplicável de salvar vidas, com uma economia estimada em custos do diagnóstico5 precoce somando mais de US $ 26 bilhões por ano, mais do que qualquer outra nova abordagem pode prometer.
A detecção precoce também é a maneira mais humana de melhorar os resultados do câncer1. Os tratamentos que normalmente se baseiam em uma combinação de cirurgia, quimioterapia2 e radiação para tumores sólidos ou quimioterapia2 e transplantes de medula óssea7 para tumores líquidos podem ser assassinos brutais, deixando pacientes em agonia, proporcionando meros meses de sobrevida6 adicional. As novas imunoterapias podem ser ainda mais perigosas. Os pacientes precisam ser tratados em unidades de terapia intensiva13 e indústrias inteiras estão surgindo apenas para controlar os efeitos colaterais14 desses tratamentos.
A autora não está sugerindo que todo o campo da oncologia tenha falhado. O linfoma15, de fato, é um dos tipos de câncer1 para o qual os resultados melhoraram e existem outros. Na década de 1970, as chances de sobreviver cinco anos com tumores mediastinais de células germinativas16 - um câncer1 que cresce a partir de células12 reprodutivas, mas que surge no peito17 - eram de apenas 3%, independentemente do estágio; agora isso varia de 42% a 76%. As taxas de sobrevivência18 de pacientes com melanoma19 e mieloma20 múltiplo também aumentaram significativamente.
Tais melhorias, no entanto, também plantaram as sementes da atual abordagem equivocada. Os resultados mais dramáticos foram alcançados com tratamentos desenvolvidos há mais de 20 anos em dois cânceres do sangue21, sendo que cada um deles resultou de uma única anormalidade celular que poderia ser tratada por um único medicamento. Esses sucessos foram muito bem-vindos, mas pareciam confirmar que o câncer1 resulta de uma mutação genética22 que pode ser curada com uma “bala mágica”. Recursos enormes foram investidos na busca de mutações únicas em outros tipos de câncer1, que evoluíram para um esforço médico extremamente popular conhecido como “oncologia de precisão”. A ideia é sequenciar tumores, identificar as principais mutações responsáveis pelo crescimento descontrolado das células12 e bloquear sua ação com um medicamento específico23.
À medida que a oncologia de precisão ganhou força, um ensaio clínico liderado pelo Instituto Nacional do Câncer1, denominado Molecular Analysis for Therapy Choice, ou MATCH, começou em 2015. Havia mais de 30 divisões deste estudo, os resultados estão lentamente chegando. Entre os tumores mais comuns testados, mutações “acionáveis” tratáveis por medicamentos existentes foram encontradas em 15% dos casos, na melhor das hipóteses. Uma decepção maior é que mesmo o pareamento de uma mutação24 com um medicamento não garantiu resultados excelentes - apenas um terço dos pacientes correspondentes responderam ao tratamento e metade dessas respostas desapareceu em seis meses. Embora a busca pela oncologia de precisão não tenha diminuído, as expectativas foram seriamente reduzidas.
Na realidade, os cânceres mais comuns são muito mais complexos. Não é de admirar que até 95% dos medicamentos contra o câncer1 trazidos ao leito nos ensaios clínicos25 falhem na aprovação da Food and Drug Administration (FDA). E os outros 5% mostram melhorias na sobrevivência18 que duram apenas alguns meses e em uma fração dos casos tratados. Uma exceção foi a introdução de novas imunoterapias como o CAR-T (células12 T do receptor de antígeno26 quimérico), que permitiu que alguns pacientes desesperados com câncer1 de pulmão8, melanoma19, linfoma15 e leucemia4 linfoblástica aguda vivessem anos além da sobrevida6 prevista. Mas há sérios problemas com o tão badalado CAR-T. O tratamento está disponível, a um custo financeiramente proibitivo, sendo acessível para pouquíssimos pacientes. Pior, ele pode ser fisicamente tóxico e não é universalmente curativo.
Então, qual é a solução?
O primeiro passo é reconhecer a complexidade do câncer1, não adianta tentar resolvê-lo com reducionismos. Não houve muito progresso nos últimos 50 anos e não haverá grandes avanços em outros 50 anos se insistirmos no velho modelo.
A ideia da detecção precoce como a melhor e mais eficaz abordagem não é nova. Já em 1907, o médico britânico Charles Childe observou que: "O câncer1 em si não é incurável ... é o atraso que o torna incurável", e pressionou por uma campanha pública para intervenção precoce. A Sociedade Americana para o Controle do Câncer1 promoveu unidades de detecção precoce das décadas de 1930 a 1950 através de um "Women’s Field Army" com o slogan "Atraso mata".
As pesquisas sobre o câncer1 prometem esperança e causam decepções há meio século.
Os testes de triagem atuais comprovaram o potencial de uma grande mudança de foco, mas estão longe de serem perfeitos. Métodos de monitoramento como mamografia27, colonoscopia28, exames de Papanicolaou e testes para antígeno26 prostático específico (PSA) estão em uso há décadas, mas nem todos são uniformemente bem-sucedidos. Algumas lesões29 progridem tão lentamente que é mais provável que um paciente morra de outra coisa, enquanto alguns tumores perigosos ainda não são detectáveis antes que seja tarde demais para curá-los.
Apesar dos problemas, vários grandes estudos mostram que as mortes por câncer1 de mama9 reduziram para mulheres examinadas por mamografias e as taxas de mortalidade11 por câncer1 colorretal e câncer1 cervical, que ocorrem de maneira gradual desde o início até a doença fatal, também melhoraram com o rastreamento. Mas o mesmo não se aplica ao câncer1 de pulmão8, por exemplo. Três estudos randomizados falharam em mostrar uma redução nas mortes para a triagem para o câncer1 de pulmão8, parte do tratamento dado aos pacientes era desnecessário e alguns se mostraram realmente prejudiciais.
A autora acredita que precisamos ir além desses testes anuais, desenvolvendo tecnologia que forneça uma triagem contínua monitorada por máquina no corpo humano30. Isso, por sua vez, permitiria tratamentos novos eficazes para combater o câncer1 em estágios iniciais - por exemplo, destruindo rapidamente um pequeno grupo de células12 malignas com um laser, sem a necessidade de cursos prolongados de radiação e quimioterapia2. E já temos vários medicamentos que funcionam bem apenas nos estágios iniciais do câncer1, inclusive para leucemia4.
Uma necessidade urgente nesse esforço é definir "biomarcadores" de células12 cancerígenas. Estes podem ser quase tudo - uma proteína incomum, um fio de material genético ou algum composto - que as células12 cancerígenas liberam em nossos corpos. O Instituto Nacional do Câncer1 já está apoiando grandes iniciativas, com a esperança de que esses biomarcadores não apenas forneçam as primeiras “pegadas” de câncer1, mas também ajudem a separar os tumores agressivos dos não-fatais.
Um bom exemplo é o trabalho do grupo de pesquisa do Dr. Bert Vogelstein na Faculdade de Medicina Johns Hopkins. Em 2018, eles desenvolveram o CancerSEEK, um exame de sangue21 que mede oito proteínas31 cancerígenas e 16 mutações genéticas do DNA que circula no sangue21. Essa "biópsia32 líquida" detectou corretamente a presença de câncer1 em 70% das amostras obtidas de pacientes com oito tipos de malignidades. Cinco dos cânceres em questão (ovário33, fígado34, estômago35, pâncreas36 e esôfago37) não têm atualmente métodos de rastreamento disponíveis.
Igualmente promissores são alguns dos dispositivos de imagem e implantáveis desenvolvidos em centros dedicados à detecção precoce do câncer1. No Canary Center da Universidade de Stanford, o laboratório do Dr. Sanjiv Gambhir conseguiu modificar um tipo específico de célula38 imunológica para patrulhar o corpo quanto à presença de células12 malignas e enviar alertas vermelhos através do sangue21 e da urina39, se forem detectados. Seu laboratório também está desenvolvendo um "banheiro inteligente" para amostras de fezes para o DNA de tumores mutados, indicando câncer1 colorretal precoce. E um estudo clínico em andamento está testando um “sutiã inteligente” equipado com sensores térmicos integrados para detectar alterações circadianas de temperatura associadas ao câncer1 de mama9 em estágio inicial.
A autora também não ficou de fora da detecção precoce, seus esforços começaram em 1984, com a criação de um repositório de tecidos, que contém milhares de amostras coletadas de seus pacientes nos últimos 35 anos, à medida que progrediam na história natural de suas doenças. Embora haja estudos regulares de amostras selecionadas desse precioso banco de células12 e observações úteis, falta a tecnologia para analisar lotes maiores. As recentes melhorias na genômica e espectrometria de massa tornaram prático e econômico o exame abrangente de tecidos para encontrar novos biomarcadores.
A ideia é desenvolver um conjunto radicalmente diferente de ferramentas para a detecção precoce do câncer1, identificando esses novos biomarcadores e desenvolvendo dispositivos de imagem e implantáveis para fornecer monitoramento persistente de corpos saudáveis. Uma grande esperança está em um dispositivo que foi apelidado de mChip, desenvolvido pelo Dr. Samuel Sia, engenheiro biomédico da Universidade de Columbia. Ele usa microfluidos para realizar a medição de qualidade laboratorial de um marcador de câncer1 a partir de uma pequena quantidade de sangue21 em um teste que pode ser realizado em casa. A empresa OPKO obteve recentemente a aprovação da FDA para o mChip para detectar um biomarcador, para câncer1 de próstata10 em estágio inicial. Uma vez identificados os biomarcadores certos, a tecnologia mChip pode ser igualmente eficaz para avistar a primeira célula38 de leucemia4.
Tais esforços esporádicos de alguns pesquisadores levarão muito tempo, por isso é necessário redirecionar os recursos intelectuais e financeiros das propostas usuais de subsídios para a detecção precoce usando amostras humanas reais.
Atualmente ainda se investe muito esforço para encontrar uma doença residual mínima. Por que não aplicar o mesmo rigor para encontrar uma doença inicial mínima? As pesquisas sobre o câncer1 prometem esperança e causam decepções há meio século. Em vez de deixar o câncer1 crescer em sua monstruosidade para o estágio final, há a necessidade de recursos para antecipar essa batalha e atacar a raiz do câncer1: as primeiras células12 cancerosas.
Leia sobre "Como prevenir o câncer1", "Câncer1 colorretal", "Câncer1 - informações importantes".
Fonte: Wall Street Journal, em 4 de outubro de 2019