Dispositivo neuroprostético mantém a tensão arterial após lesão da medula espinhal, em estudo publicado pela Nature
A paralisia1 e os déficits sensoriais são as consequências mais óbvias das lesões2 da medula espinhal3 (SCI). Muitas pessoas com este tipo de lesão4 também sofrem de hipotensão5 ortostática – uma incapacidade de manter a tensão arterial quando se deslocam da posição deitada para ficarem sentadas ou de pé. A curto prazo, a condição pode impedir o enchimento normal do coração6 com sangue7, causando tonturas8 e vertigens9. A longo prazo, os episódios recorrentes de hipotensão5 ortostática aumentam a incidência10 de ataque cardíaco e AVC, que são as principais causas de morte em pessoas que tiveram uma SCI.
Escrevendo para a revista Nature, Jordan W. Squair do Center for Neuroprosthetics and Brain Mind Institute, School of Life Sciences, Swiss Federal Institute of Technology (EPFL), em Lausanne, na Suíça, e seus colaboradores relatam uma estratégia neuroprostética que minimiza a hipotensão5 ortostática causada por SCI. O dispositivo restabelece o controle da pressão sanguínea em roedores, macacos e humanos.
A gravidade provoca o acúmulo de sangue7 na parte inferior do corpo quando nos sentamos ou ficamos de pé. A hipotensão5 ortostática resulta principalmente do comprometimento dos reflexos que impedem esta acumulação. O mais crucial desses é o barorreflexo, que é iniciado pelos barorreceptores11 – neurônios12 que sentem a pressão arterial13 e o grau de enchimento das grandes veias14 e câmaras cardíacas. Nos mamíferos, estes sensores são ativos quando o corpo está em repouso. Uma redução da pressão arterial13 ou do volume de sangue7 reduz a atividade dos barorreceptores11. Isto, por sua vez, ativa o ramo simpático15 do sistema nervoso16 autonômico, restaurando a pressão arterial13 através do aumento da resistência vascular17 e do fluxo de sangue7 de volta para o coração6. A SCI interrompe a ligação entre o tronco cerebral18 inferior, que recebe a informação dos barorreceptores11, e os neurônios12 simpáticos que inervam o sistema cardiovascular19, que têm origem nos segmentos da coluna torácica e lombar superior.
Squair e colaboradores conceberam um dispositivo neuroprostético que pode contornar este problema. Se a pressão arterial13 cair, o dispositivo fornece um estímulo elétrico chamado estimulação epidural20 da coluna vertebral21 direcionada (TESS) para o lado posterior da medula22 torácica para ativar os neurônios12 simpáticos (embora por uma via diferente da utilizada pelo barorreflexo natural). Os neurônios12 simpáticos enviam sinais23 ao coração6 e aos vasos sanguíneos24 para aumentar o débito cardíaco25 e a resistência vascular17, restaurando assim a pressão arterial13 normal.
A hipotensão5 ortostática é tipicamente gerida por mudanças no estilo de vida (como o uso de meias de compressão nas pernas) e drogas como a fludrocortisona (um expansor de volume de sangue7) ou a midodrina (que ativa os receptores que normalmente fazem a mediação do efeito dos nervos simpáticos no coração6 e nos músculos26 vasculares27). No entanto, estes medicamentos podem ter efeitos adversos. Outras abordagens incluem a estimulação elétrica dos músculos26 esqueléticos nos membros inferiores, que ativa a bomba muscular e ajuda no enchimento cardíaco, e cintos de constrição28 abdominal. Ambas estratégias têm sido utilizadas de forma terapêutica29, mas a sua eficácia não foi claramente demonstrada.
Poderiam os dispositivos neuroprostéticos serem uma alternativa melhor? O princípio é restaurar a função, estimulando eletricamente as vias neurais que se tornaram insensíveis em resultado da SCI. Idealmente, a estimulação deveria aproximar-se do padrão de atividade que normalmente controla a função visada. Tal abordagem já foi utilizada para restaurar parcialmente a locomoção em primatas. Também tem sido utilizada para ativar os músculos26 das pernas para melhorar o controle da pressão sanguínea em pessoas com um SCI, embora as razões para o seu aparente sucesso neste cenário não fossem claras.
Squair e seus colegas propuseram-se a desenvolver uma neuroprótese mais precisa para o controle da pressão sanguínea. O seu ponto de partida foi o desenvolvimento de um modelo de rato da SCI. A análise da atividade neuronal no modelo confirmou que a tensão arterial e as respostas simpáticas eram instáveis nestes animais. Devido ao seu pequeno tamanho, os ratos não experimentaram hipotensão5 ortostática. No entanto, os autores utilizaram uma câmara de pressão negativa para reduzir a pressão de ar em torno da parte inferior do corpo; isto fez com que o sangue7 se acumulasse na parte inferior do corpo, replicando o fenômeno.
Em seguida, Squair e colaboradores perguntaram onde deveria ser aplicada a estimulação elétrica (chamada estimulação espinhal epidural20 direcionada, ou TESS) para desencadear as respostas simpáticas que alteram a pressão sanguínea. Estimularam sistematicamente segmentos vertebrais nos ratos lesados e descobriram que a pressão sanguínea dos animais podia ser aumentada substancialmente através do fornecimento de impulsos elétricos perto do lado posterior da medula22 torácica inferior. Uma série impressionante de experiências - análises de imagem e anatômicas, combinadas com modelação computacional e manipulações para ativar ou inibir os neurônios12 envolvidos na região – revelou que a TESS eleva a tensão arterial ativando um subconjunto de neurônios12 aferentes sensoriais (que transmitem sinais23 da pele30, músculos26 e órgãos internos em direção à medula espinhal3). Estes neurônios12 aferentes excitam indiretamente os neurônios12 simpáticos eferentes que controlam a circulação31 esplâncnica (os vasos sanguíneos24 dos órgãos abdominais).
O passo seguinte dos autores foi conceber um dispositivo de controle biomimético que ajustasse continuamente a TESS para evitar qualquer queda de pressão sanguínea nos ratos feridos. Seguidamente, adaptaram com sucesso este conceito de “neuroprótese barorreflexa” para macacos rhesus. Isto implicava testar sistematicamente cada segmento espinhal mais uma vez, para identificar os segmentos que deveriam ser alvo da TESS e escalar a sua neuroprótese para corresponder à anatomia maior do macaco. Finalmente, e o mais notável, o grupo demonstrou que o barorreflexo protético podia restaurar a estabilidade da pressão sanguínea numa pessoa que experimentasse hipotensão5 ortostática incapacitante após uma SCI.
Este estudo é sem precedentes em muitos aspectos, e, como tal, levanta várias questões. Por exemplo, os neurônios12 aferentes sensoriais que são estimulados pelo dispositivo protético não são identificados, e os efeitos a longo prazo da sua estimulação são desconhecidos. O circuito espinhal é reconfigurado após um traumatismo32 espinhal e os reflexos são exacerbados de tal forma que estímulos anteriormente inócuos podem desencadear episódios de tensão arterial perigosamente elevada. Será necessário tempo e mais experiências em animais para determinar se a ativação crônica destes neurônios12 aferentes irá mitigar33 ou agravar os reflexos hiperativos. De fato, ao contrário do verdadeiro barorreflexo, o barorreflexo protético é presumivelmente muito melhor na prevenção de crises de hipotensão arterial34 do que na atenuação de aumentos da tensão arterial.
Além disso, é possível que a neuroprótese tenha efeitos adversos nas funções gastrointestinais e renais, que são reguladas por neurônios12 simpáticos torácicos inferiores. Finalmente, é necessário um procedimento invasivo para a colocação de um eletrodo epidural20 na coluna vertebral21, e a sua eficácia a longo prazo é desconhecida.
No entanto, esta última tentativa de tratar a hipotensão5 incapacitante que se segue à SCI é fundamentada em provas neurocientíficas pré-clínicas e é a estratégia mais sofisticada desenvolvida até o momento. Essa abordagem poderia eventualmente substituir os tratamentos atualmente disponíveis – embora seja demasiado cedo para se ter certeza disso.
Leia também “Tetraplegia”, “Paraplegia35”, “Amiotrofia36 espinhal”, “Poliomielite37” e “Síndrome da cauda equina38”.
Fonte: Nature, publicação de 27 de janeiro de 2021